Por uma teologia do trabalho em tempos de desemprego, precarização e home office
Vinnícius Almeida
3 mai. de 2022
|9 minutos de leitura
Saudações & considerações Iniciais
Sei que o público da Pilgrim é todo de gente que lê. Não apenas lê, mas produz e reproduz teologia a partir de suas respectivas comunidades.
Primeiro de maio é a data em que se rememora o dia do trabalhador ou o dia do trabalho (dependendo da perspectiva ideo-política do site que você visitar nessa data, a expressão vai estar deste ou daquele jeito). E este texto é para nós que temos a teologia como labor.
O mundo do trabalho, que tem passado por tantas transformações, tem sido profundamente afetado pela pandemia. Destas consequências, impactos na saúde, problemas econômicos e sociais afetam diretamente a vida, o meio ambiente e os recursos para a subsistência e bem-estar de milhões de pessoas. Nós amamos falar de mandato cultural, não é?
Se sua resposta for sim, penso que esse é o momento de considerar o mandato cultural por uma perspectiva propositiva, como nos lembra Vanhoozer, e dar materialidade ao nosso papel diante desse tema: a relação entre trabalho e trabalhador.
É uma conversa inicial. Uma prosa. Não espere algo sofisticado, beleza? Apenas levantando alguns pontos para pensarmos.
Fato é que os governos, o mercado, as organizações de trabalhadores e de empregadores, estão desempenhando um papel fundamental nessa transição de pandemia, devendo assim, mais do que fazer uma discussão sobre protocolos de distanciamento, álcool 70 e máscaras, garantir a segurança das pessoas e também a continuidade das empresas e dos empregos, certo?
Até aqui, ok.
E a Teologia?
- Que tarefa tem a teologia diante das questões da sociedade, das categorias fundamentais à vida e até mesmo aos direitos, bens e serviços que promovem a dignidade humana?
A perda da razão social do trabalho tem como ressonância a perda do sentido do trabalho para aqueles que o realizam.
Estamos no blog gente, e pretendo poupá-los de inúmeras referências (nada contra a ABNT, juro), mas já sabemos o quanto a saúde mental tem sido prejudicada pelas atuais contradições entre os processos de modernização e da precarização do trabalho.
Se o trabalho como processo material está sujeito a um campo de possibilidades e limitações que pesam seus efeitos sobre os problemas resolvidos ou a resolver — aquilo que ficou conhecido pela sociologia por divisão técnica e social do trabalho — o que a teologia tem a dizer?
É possível revisitar e aprender com a tradição cristã
Dois rápidos dentre os tantos exemplos positivos que temos, encontram-se no pensamento de Lutero e Calvino, que entendiam o sentido do trabalho enquanto uma vocação, condição de também viver a bênção de Deus por meio do que se faz, independentemente do ofício exercido. Como bem lembra Biéler:
A força de trabalho que uma pessoa pode desenvolver é o próprio meio pelo qual Deus provê a vida a suas criaturas; é o trabalho de Deus. Agir corretamente para uma pessoa, é ajustar-se em todas as coisas à ação de Deus. O trabalho do ser humano tem sentido porque, adequadamente cumprido, é a própria obra pela qual Deus mantém a vida das pessoas. [1]
É verdade que Karl Marx é o primeiro nome lembrado nos últimos tempos quando se trata de pensar a origem e os processos no mundo do trabalho. É dele (e de Engels), a moderna observação do trabalho como uma exigência vital da existência humana. Eles percebem também que os recursos materiais, humanos e naturais compõem os instrumentos de trabalho acessíveis para organizar ou impedir formas de produzir e reproduzir a vida, dependendo do que se tem em mãos. Assim, o papel do sujeito é sempre ativo. Então, diz o filósofo, que o ser humano se desumanizou e a comunidade sofreu rupturas e as relações sociais se coisificaram.
Interessante que a teoria marxiana busca ao máximo não cometer o contrasenso de negar a realidade [2]. Não sou eu quem digo, viu? É ninguém menos que o grande Albert Wolters [3]. Wolters observa que, enquanto cosmovisão, o calvinismo é similar ao marxismo no que se refere a um modo abrangente de sua intelectualidade, aplicabilidade e envolvimento diante dos fenômenos socioculturais.
Nossa teologia é preocupada com a aplicabilidade? Que relação, feitos e efeitos isso tem na realidade? É impressionante como até mesmo outras cosmovisões possuem um alinhamento teórico e prático quanto a isso e, por vezes, nossa teologia, infelizmente não age assim.
Por uma teologia do trabalho a partir da realidade
É possível pensar na concepção moral e espiritual do trabalho sem a teologia? Quais mudanças essa reflexão pode promover? O que a teologia e a tradição cristã teriam a dizer?
Se o trabalho é o meio pelo qual o ser humano é chamado a transformar o mundo (ou cultivar, para os que acolhem a perspectiva do mandato cultural), é mediante o trabalho que a sociedade pode alcançar possibilidades de desenvolvimento e potencializar a própria dinâmica da vida, do bem comum.
Se o trabalho tem todo esse peso no plano divino e em nossa crença, não seria tarefa nossa um empenho também nesse campo - ou se preferir, esfera - de responsabilidade?
Diante disso, sugiro uma prosa
Converse com as pessoas de sua igreja sobre as relações de trabalho delas, das jornadas de trabalho, a mobilidade, o trânsito e o deslocamento de suas casas; quantas dessas vivem em bairros-dormitórios e chegam apenas tarde da noite?
Vamos refletir na relação disso com a afirmação do Shabat (שבת cf. Gn 2.3) e revisitar a teologia do descanso, tema tão necessário na sociedade do cansaço. Observe, ao conversar com as pessoas, quantas vezes as injustiças aparecem e a negação de direitos (até mesmo trabalhistas) são violados.
Continue e ouça os trabalhadores informais, empregadas domésticas, copeiras, auxiliares de limpeza, gráficos, metalúrgicos, designers, programadores, profissionais liberais, professores, jovens universitários ou jovens que gostariam de cursar uma universidade e não podem por razões de trabalho (ou devido a ausência dele).
Quantos são os desempregados? Ouvi recentemente de uma família que alternava a ida aos domingos na igreja, porque ficava inviável o deslocamento devido o preço da passagem de ônibus e metrô para toda a família. Isso os privou de frequentar os cultos.
"O trabalho é o meio pelo qual o ser humano é chamado a transformar o mundo"
(Felizmente, a igreja tem apoiado e custeado esse valor para o transporte).
Fale com os empresários, comerciantes e tantas outras categorias e ouça as dificuldades. Veja o quanto temos que caminhar para uma pastoral do trabalho em nossas igrejas, acolhendo essas questões e desafios.
É bem verdade que o cristianismo tem uma vasta produção e variadas ênfases teológicas que buscam responder a esses questionamentos. Da Doutrina Social da Igreja, expressa em documentos que vão da Rerum Novarum à Laborem Exercens; na ala católica, aos escritos luteranos, calvinistas, metodistas e mesmo os ainda nem tão conhecidos por aqui, mas já com seu devido rigor histórico, como O problema da pobreza, de Abraham Kuyper [4].
Uma proposta de teologia (e não sociologia) do trabalho
O trabalho do ser humano tem sentido porque é a própria obra pela qual Deus mantém a vida das pessoas desde a narrativa da criação, no texto bíblico de Gênesis. Contudo, também o trabalho humano é corrompido e assim integra a desordem da criação, como muitas outras dimensões da vida. Por conseguinte, esse trabalho, desconectado da obra pela qual pretende Deus, torna-se fonte de problemas, de ansiedade, de injustiça e de opressão.
Ora, bem sabemos que os efeitos da queda não pararam em Gênesis 3…
Nos últimos anos, o cenário de cidades brasileiras passou a contar com a figura dos entregadores ciclistas por aplicativo, mais conhecidos como bikeboys. Em termos gerais, o que ficou conhecido como a uberização do trabalho é o processo em que o trabalhador informal se vê despojado de direitos, garantias e proteções associadas ao trabalho e arca com os próprios riscos e custos de sua atividade.
Independentemente da sua linha política, nossa tarefa aqui é outra.
Uma teologia do trabalho nos ajuda a acalmar os ânimos, humanizar as relações, olhar de perto essas histórias, acolher o porquê um jovem (ou adulto), precisa pegar sua bicicleta ou moto e sair por aí para complementar a renda, mesmo diante de condições injustas.
É, valendo-me da provocação de Vanhoozer [5], quando diz: “O envolvimento da teologia com as Escrituras não pode se dar ao luxo de permanecer em um nível puramente intelectual. Compreender as Escrituras envolve muito mais que sistematizar dados e processar informações doutrinárias”. Com isso, Vanhoozer quer dizer que a teologia tem atos comunicadores...
**E quais seriam os nossos atos comunicadores? **
O que podem dizer os cristãos-cidadãos sobre as relações de trabalho em nossos tempos?
-
Quais são nossas proposições “à luz da Bíblia”, como gostamos de dizer?
-
Nos tempos em que as condições de trabalho causam adoecimento e sofrimento;
-
Que a saúde mental é relacionada ao trabalho como um problema de saúde pública;
-
A ausência de trabalho, que tem angustiado a muitos (12,9 milhões no Brasil, apenas no primeiro trimestre de 2020);
-
Aliás, mais de 50 milhões de brasileiros não possuem um contrato de trabalho nesse período de pandemia;
-
Que trabalho terá a juventude (11 milhões), que não estuda e não tem acessos à empregabilidade formal e digna?
-
Onde 2,4 milhões trabalham, mas na lógica perversa do trabalho infantil. São crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos;
Será que essa população que tanto trabalha (ou ‘só’ trabalha) têm condições de abrir a Bíblia e contemplar aquilo que diz o texto sapiencial?
Não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho. E vi que isso também vem da mão de Deus. (Eclesiastes 2.24)
Ou
Descobri também que poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho, é um presente de Deus. (Eclesiastes 3.13)
Como meditar, ler ou fazer uma lectio divina quando o ritmo de trabalho é tão exacerbado e desordenado que sucumbe a possibilidade do descanso?
Já estamos atrasados no turno
Já estamos atrasados e precisamos agir seriamente diante dos problemas que afetam as relações de trabalho na realidade brasileira.
Sendo nós, comunidade inserida no mundo a cooperar como trabalhadores do Reino de Deus, que possamos buscar os meios para santificar o trabalho, tão inumano, utilitarista e brutal, presente nas estruturas na divisão social do trabalho na sociedade brasileira atual…
Trabalhadores do mundo, uni-v... ora et labora!
REFERÊNCIAS:
[1] BIÉLER, ANDRÉ. O Humanismo Social de Calvino. Tradução: A. Sapsezian. São Paulo, Edições Oikoumene, 1970, p. 42.
[2] Pode-se até mencionar o pensamento de Agnes Heller, que estuda uma filosofia da práxis para pensar o cotidiano e o indivíduo.
[3] Cf.: WOLTERS (1983, p. 117 apud NAUGLE). NAUGLE, David. O senhorio de Cristo sobre a totalidade da vida: uma introdução ao pensamento de Abraham Kuyper. In: Kuyper, Abraham. Em toda a extensão do cosmos. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017, p. 106.
[4] Detalhe importante: Kuyper organizou o primeiro Congresso Social Cristão na Holanda, apenas alguns meses depois do Papa Leão XIII ter promulgado a encíclica Rerum Novarum, que por sua vez, foi escrita quarenta anos depois das ideias de Karl Marx circularem nos ambientes operários.
[5] VANHOOZER, K. O Drama da Doutrina. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 89.
Original: Escrito por Vinnicius Almeida
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Revisão: Maurício Avoletta Júnior
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